Volume 01 — Um dia, com certeza
Capítulo 01 - Vou manchar aquela garota
A primeira lembrança da minha vida é a de ser espancado.
“Ei, o que foi? Vai, chora mais alto, vai!”
Cercado por um grupo de delinquentes, apanhei de punhos e chutes até não aguentar mais. Doía tanto, ardia tanto, que tudo o que pude fazer foi chorar. Mas nem isso os fez parar continuaram me batendo sem piedade.
“Red, Seu desgraçado! Você me dá nojo!”
Um deles gritou isso. “Red seu Desgraçado”... A partir daquele momento, foi assim que passei a ser chamado.
“Com essa pele vermelha, você nem é humano, não é?”
Sim. Minha pele é vermelha. Claramente diferente da dos outros. Por causa disso, sempre fui tratado como uma aberração algo nojento, digno apenas de ser espancado.
Quando se cansaram de me bater, cuspiram em mim, que jazia no chão, e foram embora. Chorei mais um pouco, depois me levantei e fui até a fazenda.
Era uma fazenda nos arredores, bem ao leste da estrada principal. Na entrada, o fiscal me esperava.
“Ei, Red. Por que você se atrasou?”
O olhar dele era frio. Aquilo não era uma pergunta era uma acusação.
“Hoje você fica sem jantar.”
“...Sim, senhor.”
“Ande logo e comece a trabalhar.”
“Sim.”
Coberto de hematomas, comecei o trabalho sem protestar. Fiquei no canto da fazenda, ceifando colheitas com uma foice, lado a lado com outras crianças.
Horas depois, quando o sino anunciou o fim do expediente, todas as crianças correram para receber a refeição da noite. Mas eu apenas caminhei sozinho, devagar, e deixei a fazenda de mãos vazias.
Voltei pela estrada escura, sem nem mesmo a luz da lua, e entrei numa pequena igreja abandonada. Deitei no chão frio e deixei o corpo desabar. A fome doía, mas o cansaço era maior, e acabei dormindo.
Mais um dia tinha acabado.
Eu tinha cinco anos e essa era a minha rotina.
Naquela cidade havia dezenas de crianças pobres. A maioria havia perdido os pais na guerra. De dia, pediam esmolas ou trabalhavam até a exaustão nas fazendas; à noite, dormiam em celeiros abandonados ou ruínas. Essa era a vida dos miseráveis.
E entre todos eles, eu era o mais miserável.
Ser insultado ao andar pela rua era comum. Levar pedradas também. Mesmo quando o sangue escorria, ninguém me ajudava apenas me olhavam com desprezo, como se dissessem: “Morra logo, e alivie o fardo do mundo.”
Talvez estivessem certos. Se eu morresse, a competição pela sobrevivência ficaria um pouco mais fácil para eles.
Mas, para o azar de todos… eu não morri.
Meu corpo, desde o nascimento, era anormalmente resistente. Por mais que me batessem, por mais que me explorassem na fazenda, eu sobrevivia. Outros, mais fracos, sucumbiam um após o outro eu não.
E conforme crescia, meu corpo também crescia. Fiquei muito maior que as outras crianças da minha idade. Grande e resistente era tudo o que eu tinha. Minha única riqueza. Meu único trunfo.
“Ei, Red! Ainda tá vivo? Vem cá um instante.”
Mas, mesmo tendo ficado grande, o cotidiano não mudou. Eu ainda apanhava. Havia muitos deles, e eu continuava sozinho.
Mais uma vez, fui cercado e espancado exatamente como na infância.
Mas uma coisa havia mudado: eu já não chorava.
Aprendi que chorar não mudava nada. Ninguém vinha me salvar.
Encolhido no chão, só esperava a violência acabar. E quando terminava, me levantava como se nada tivesse acontecido.
Eu já estava completamente acostumado àquilo.
Alguns anos depois…
Num certo dia de outono, eu revirava o lixo de um beco, procurando algo que pudesse usar no inverno. Para quem vive na miséria, negligenciar o frio é o mesmo que assinar a própria sentença de morte.
“Abram caminho! A filha do duque está passando!”
De repente, alguém gritou. A voz vinha da rua principal.
Filha do duque?
Não fazia ideia do que era isso. Soltei o que tinha nas mãos e fui até lá, movido por uma curiosidade infantil era a primeira vez que ouvia aquelas palavras.
Na rua principal, uma multidão observava uma carruagem. Cercada por soldados, era a mais luxuosa que eu já tinha visto. Já vira carruagens de nobres antes, mas nenhuma se comparava àquela pintada em preto e dourado, adornada com flores esculpidas.
Para alguém como eu, era um objeto inalcançável, de outro mundo.
Dentro da carruagem, estava uma garota de vestido branco. Cabelos dourados, olhos límpidos… Mesmo sem qualquer senso de beleza, a palavra “linda” surgiu naturalmente na minha mente.
Pele alva, lábios vermelhos, um rosto que lembrava as bonecas que um dia vi numa vitrine quebrada.
Neste mundo existem criaturas repulsivas como eu… mas também seres tão belos quanto ela.
Foi o que pensei.
A carruagem avançava lentamente. Eu fiquei imóvel, hipnotizado pela ostentação e pela beleza daquela garota.
“...Hã?”
Quando a carruagem passou diante de mim, a garota me olhou.
“Aquilo… o que é aquilo?”
Ela arregalou os olhos por um instante e logo em seguida fez uma careta. Como quem vê um inseto repulsivo.
“Que nojo…”
Ela desviou o olhar, fechou a janela, e a carruagem seguiu com os soldados, desaparecendo da cidade.
Quando sumiu, as pessoas também se dispersaram.
Mas eu continuei parado.
O rosto dela, a expressão de repulsa, a palavra que murmurou não saíam da minha cabeça.
Esqueci a fome. Esqueci a dor. Só conseguia pensar nela.
Sim…
Para os nobres, os pobres não passam de lixo.
E eu era o pior entre eles.
Para aquela garota, eu devia parecer menos que um inseto… não menos que fezes.
A humilhação e o desespero que eu havia esquecido voltaram com força total.
Para ela, eu não era humano. Nem mesmo lixo.
Eu era algo inferior tão nojento que bastava olhar para mim para sentir nojo, desviar o olhar e fechar a janela.
Era isso que eu era.
“...”
Doía mais do que qualquer surra, mais do que qualquer pedra.
Uma única palavra dela dilacerou o meu coração.
Quem você pensa que é?
Nasceu com tudo, cercada de luxo, e ainda assim ousa desprezar quem só conheceu o inferno desde o nascimento?
O calor da raiva me consumiu por dentro.
Cerrei os punhos, rangei os dentes, e gritei em silêncio, dentro de mim:
Eu vou fazer você provar essa mesma humilhação. Esse mesmo desespero.
Vou destruir sua carruagem luxuosa, rasgar seu vestido branco, manchar sua pele perfeita…
Vou arrastar você até o fundo do poço onde eu vivo.
Um dia. Com certeza… um dia!
Aos doze anos, foi assim que conheci a primeira raiva da minha vida.
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